sexta-feira, fevereiro 24, 2006

A Raimundo Correia

Nas três últimas décadas do século 19, o Brasil passou por uma ebulição cultural, transformando todos os segmentos da sociedade, com grande destaque para as áreas política, ideológica e literária. Transformações, essas, benéficas, num certo sentido, mas, por outro lado, catastróficas. Benéficas ao deparar-se com a geração de então se levantando em busca da concretização de seus ideais, ao contrário de nossos dias, quando vemos, com raras exceções, a juventude estagnada, alheia a tudo o que a rodeia, senão à satisfação pessoal e de seus instintos, debruçando-se sobre o seu “eu”, genuflexa ante às baixas imposições da natureza humana, buscando os subterfúgios que lhe servem de apoio, entrando, assim, num processo de alienação de si em favor das paixões e dos vícios, num labirinto onde se perdem e se deparam com o amor-próprio e com o desamor.
Voltando à realidade do final da centúria oitocentista, as transformações maléficas teriam sido a exaltação do Naturalismo, do Positivismo e do Racionalismo, principalmente nos meios acadêmicos, rendendo, àquela época, o epíteto de “a Renascença Brasileira”. Contudo, não se pode olvidar os tantos vultos que se sobressaíram no cenário sócio-cultural daqueles dias, oriundos de todos os quadrantes destes brasis, concentrando-se nos principais centros de então: Rio de Janeiro e São Paulo; esta, por ser um forte campo acadêmico com notável vocação para o nacionalismo, como atestara o passado e comprovara o futuro; aquela, por ser a Corte e, depois, capital da República, para onde convergiam, naturalmente, todos os valores.
Nessa época, em que a Literatura liquidava o Romantismo, cedendo-se ao fascínio do Parnasianismo, é que surge o admirável Raimundo Correia, que, com Alberto de Oliveira e Olavo Bilac, formara a “trindade parnasiana”. E o sensível humanista e inspirado poeta não escapara à regra. Tendo, ao início, deixado se levar pelo Romantismo, não tardou deixar se seduzir pela “Idéia Nova” em voga (aliás, que ele cantou em versos), até se consagrar no Parnasianismo como “o maior artista do verso” no Brasil.
Melancólico, às vezes descrente (senão frustrado em seu íntimo), sua pena espelhou uma tristeza interior, um sofrimento profundo e suas considerações acerca da transitoriedade da vida e das coisas. Tudo lhe parecera ser passageiro, ser desilusão, nada de bom existira, talvez, no pensamento desse poeta-filósofo, enquanto suas atitudes atestavam extraordinária pureza e bondade, conforme relatam seus biógrafos, a ponto de Afrânio Peixoto cognominá-lo “São Raimundo”. E de um de seus mergulhos ao seu interior nemoroso, quiçá tenha emergido “Mal Secreto”, concluindo que:
“Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!”
Ou num dos instantes de desilusão deixara escapar-lhe no papel “Vulnus”:
“Com bons olhos, quem ama, em torno tudo vê!
Folga, estremece, ri, sonha, respira e crê;
A crença doira e azula o círculo que o cinge;
Da volúpia do bem o grau supremo atinge!

Eu também atingi esse supremo grau:
Também fui bom e amei, e hoje odeio e sou mau!
E as culpadas sois vós, visões encantadoras,
Virgínias desleais, desleais Eleonoras!

Minha alma juvenil, ígnea, meridional,
Num longo sorvo hauriu o pérfido e letal
Filtro do vosso escuro e perigoso encanto!

A vossos pés rasguei tantos castelos! Tanto
Sonho se esperdiçou! Tanta luz se perdeu!...
Amei: nem uma só de vós me compreendeu!”Certo é tudo o que lhe tocara o sentimento ou se desenrolara em seu raciocínio foi tema para os versos desse poeta que sentiu-se feliz e amado, mas cuja felicidade o desanimava, cujo amor o constrangia (in “Incoerência”).
21/10/2004