segunda-feira, outubro 20, 2008

A casa da lira

Desde pequeno, observava o artístico gradil que sobrepõe a porta principal da casa do “Seu Dudu” – como ouvia chamar a casa que fica na rua de baixo à de meus avós, onde passei quase toda a minha infância. Rodeada por um artístico trabalho em ferro, uma lira salienta-se em meio a tantas voltas, qual meada de ferro transformada em obra de arte de fino lavor. E a referência que tinha daquela velha casa era a lira – a casa da lira.
Os anos se passaram e ali continua a edificação, na rua Coronel Arthur Nascimento, desafiando o tempo e o progresso. Em seu entorno não há mais nenhuma construção que lhe seja contemporânea. À solidez de sua estrutura e ao cuidado de seus atuais proprietários deve-se a sua preservação, ao contrário de tantas outras que tão facilmente foram postas ao chão.
Mas só pude saber um pouco mais de sua história quando estava levantando a genealogia da família Baêta Neves. Durante as agradáveis palestras que sempre tinha com sta. Regina Baêta Furtado de Mendonça, que discorria sobre as histórias de família como se tivesse conhecido todos os seus avoengos e testemunhado cada momento de suas vidas, ela sempre se referia à “Tia Nata”, irmã do “Vovô Barão”. Até que um dia ela relatou-me a história daquela casa e de sua proprietária.
Fortunata Augusta Baeta Neves (Tia Nata) era filha do Comendador Joaquim Lourenço Baeta Neves e de Maria Fortunata Monteiro de Barros Lobo, portanto, irmã de Joaquim Lourenço Baeta Neves Júnior, o Barão de Queluz. Ela nasceu a 17 de agosto de 1842, poucos dias após as batalhas da Revolução Liberal em Queluz. Ainda jovem, foi internada no Colégio Providência, em Mariana, formada sob a disciplina das Irmãs Vicentinas, onde aprendeu, entre as atividades reservadas, na época, às mulheres, a tocar piano. E à arte de Euterpe dedicou-se de modo tão especial que, quando foi se casar, o Comendador Baeta mandou construir-lhe uma casa, próxima à sua, e na fachada colocou o ornamento destacando a lira, em homenagem à sua filha.
A pianista Fortunata Augusta casou-se a 11 de dezembro de 1859, com seu parente Joaquim Affonso Baeta Neves. Portanto, a construção da casa é dessa época, pois teria sido o presente de casamento de seu pai (ou, na verdade, seria o seu dote). De acordo com Regina Mendonça, eram concorridos os saraus na casa de “Tia Nata”, onde se ouvia boa música, declamavam-se poemas e a culinária portuguesa, conservada em família, era degustada pelos convidados: “era um ambiente aristocrático e muito elevado. Tia Nata era muito culta”, relatava-me Regina.
Conta-se, também, que ela teria sido a primeira harmonista na Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Com a decadência da música sacra, no final do século 19, os grupos musicais se enfraquecendo, em prejuízo do esplendor da liturgia, dona Fortunata presenteou a igreja com um harmônio francês, que até poucos anos ainda se encontrava num dos cômodos de despejo da igreja.
De seu casamento teve um único filho, Affonso Augusto Baeta Neves, em 1864. No entanto, desde novo, apresentava-se frágil, sempre às voltas com algum achaque. Com o tempo, a enfermidade do filho foi se agravando, na mesma intensidade em que, debalde, os desvelos maternos se redobravam. Affonso Augusto faleceu a 5 de julho de 1885. Seu pai, Joaquim Affonso, morrera um ano antes, a 15 de abril de 1884.
Viúva e sem o filho, Fortunata contraiu segundo casamento, com o coronel Arthur Augusto do Nascimento. Recém-chegado de São Paulo, viúvo e com dois filhos pequenos, Arthur Nascimento encontrou em Fortunata a companheira para viver ao seu lado e a mãe dedicada para seus filhos. O carinho que lhes devotou foi recompensado pelo respeito, estima e amparo, principalmente quando se enviuvou pela segunda vez. Fortunata morreu a 19 de maio de 1925.
O coronel Arthur Nascimento foi figura de projeção na cidade. Foi nomeado Diretor Literário, cargo equivalente ao de inspetor de ensino, ficando responsável por todo o município, no qual se inseriam muitos distritos. Na política também se destacou, principalmente como mediador em meio às rivalidades partidárias que, por vezes, colocavam em risco a tranqüilidade social. Arthur Nascimento faleceu por volta de 1917, deixando dois filhos.
Atualmente, a casa pertence aos descendentes de um dos filhos dele. E é atendendo ao desejo deles, de saberem um pouco da história daquela edificação, que reuni as lembranças de minhas conversas com Regina Mendonça e as anotações feitas durante pesquisas em documentos e alfarrábios.

Casa da Lira na rua Coronel Arthur Nascimento, construída no século XIX

Detalhe do gradil de ferro sobre a porta