Na contemplação da imagem do Cristo ensangüentado e com a cruz às costas, muitos corações endurecidos cedem à contrição
Minas Gerais é uma região rica em tradições religiosas. O destaque é para o Tempo da Quaresma, culminando com a Semana Maior, a Semana Santa. Em muitas cidades, ainda se conservam tradições que remontam ao oceano, trazidos pelos colonizadores. São atos de piedade, muitos deles paralitúrgicos, que sempre contribuíram para alimentar a fé, principalmente dos mais humildes. Apesar da investida bestial, inclusive de alguns membros do clero, contra esses costumes, muitos, por enquanto, conseguem assimilar a importância dessas solenidades, conservando-as e até restaurando-as, onde travou-se a batalha contra os valores culturais e contra a espiritualidade do povo humilde.
Mas não é a intenção deste artigo julgar ou questionar as atitudes dos outros, senão procurar entender todo esse aspecto religioso peculiar do qual se reveste este período, com maior fervor em determinadas localidades e cerimônias específicas. Genericamente, vive-se esta época em função da prática da meditação sobre a morte, humanamente entendida (e não teologicamente), às vezes até em prejuízo da celebração da redenção do homem, que culmina com a ressurreição de Cristo. Porém, deve-se observar que o ambiente e as prescrições religiosas levam a isso; o jejum, o recesso das festas (embora poucos observem, hoje, esse costume), o recolhimento a que os altares nas igrejas, revestidos de panos roxos, convidam, simbolizam o recato pela paixão e morte de Jesus e a admoestação para a prática de penitência, quando, então, o homem volta-se para o seu interior e, mirando o sofrimento do Cristo, enxerga a sua miséria.
É na contemplação da imagem do Redentor ensangüentado e com a cruz às costas que muitos corações endurecidos cedem à comiseração, reconhecendo, misteriosamente, as suas fraquezas e, penitente, põe-se a acompanhar aquele que como um titã, elevado sobre os ombros dos fiéis, avança pelo mar de pecadores que o acerca. É a procissão do Senhor dos Passos, um dos mais antigos costumes oriundos de Portugal, talvez a primeira cerimônia extra-litúrgica de que se tem notícia, antes de se começarem a realizar as procissões do encontro e do enterro. Em Lafaiete, acredita-se que em meados do século XVIII já se fazia a "Festa de Passos", promovida pela Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos, que funcionava na Matriz. A comemoração, em um dos domingos da Quaresma (portanto, antes da Semana Santa), constava de celebração da Santa Missa e procissão com a imagem do Senhor dos Passos, que percorria os passos (pequenos oratórios públicos), onde se fazia breve meditação sobre a Paixão. Esses passos se localizavam um no Largo da Matriz (onde hoje está o prédio da Escola de Música), outro na rua do Carmo (atual avenida Prefeito Mário Pereira, nas imediações do imóvel de número 97) e na rua Direita (atual rua Comendador Baêta Neves, nas proximidades do nº 241); não se sabe se teve mais algum passo, pois são sete os Passos da Paixão. Há referência, também, na última década do século XVIII, no livro de registros de casamentos da freguesia de Queluz, de uma ermida do Senhor dos Passos na Vila.
A imagem do Senhor dos Passos, da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, é uma autêntica peça do barroco mineiro. O artista plástico e restaurador Carlos Magno Araújo, que a restaurou há alguns anos, suspeita que ela seja obra de um santeiro que existiu na região de Ouro Preto, na primeira metade dos setecentos, dada a similitude com outras obras identificadas como sendo dessa oficina. A imagem em roca possui um semblante assaz expressivo, num misto de dor e de compaixão. No rosto, há indícios de que as gotas de sangue sejam rubi, algo pouco comum naquela época nesta região, com semelhantes casos apenas em Ouro Preto, São João del Rei e Sabará.
O fervor religioso, associado à figura do Senhor dos Passos, está intimamente ligado a promessas feitas em virtude de pestes e calamidades. Daí que, para além desta procissão, em períodos mais difíceis, como em tempos de seca ou de alguma epidemia, sua imagem era levada à rua, como forma de "aplacar" o que entendiam ser a ira divina. Todas estas manifestações têm uma carga simbólica acentuada. Na procissão do depósito, por exemplo, a imagem do Cristo ia velada, representando a passagem do Cenáculo para o Monte das Oliveiras, no silêncio da noite, quando a amargura pela hora que se aproxima rodeava o Divino Mestre; apenas quando o préstito chegava à igreja onde ficaria depositada a imagem até o momento da Procissão do Encontro, tirava-se o velário para a veneração dos fiéis. Quando começou a realizar o depósito, também, da imagem de Nossa Senhora das Dores, procedia-se da mesma forma.
A Procissão do Encontro, costume este que só foi introduzido em Minas no século XIX, ainda hoje continua a reunir milhares de pessoas que se reúnem para assistir a essa marcante cena da história da redenção: o instante em que o filho, a caminho da morte, se encontra com sua mãe. Toda a movimentação remete os espectadores a uma época que se confunde entre a veracidade dos tempos bíblicos e o teatralismo lúgubre, peculiar do barroco, como herança mística da Idade Média.
O préstito conduz o andor com a imagem do Senhor dos Passos. Por cinco vezes o cortejo é interrompido diante dos Passos (o total de sete passos conta-se com a igreja onde estava depositado e a outra onde será recolhido); ali se medita a Paixão, por meio da leitura de um texto ou o canto dos famosos "Motetos dos Passos"; aliás, a música sempre teve função relevante nas solenidades religiosas. Até há bem pouco tempo, cantavam-se os motetos de autoria de Antônio de Pádua Falcão, que viveu em Tiradentes (MG) entre os séculos XIX e XX, mas há referências de execução das peças do mineiro Manoel Dias de Oliveira em tempos remotos. Também, na região, compuseram músicas para essa ocasião os compositores João Horta, em Itaverava, e Arlindo Ramos, em Queluz. Em um desses passos da Paixão, a Verônica intervém no drama e, piedosa, apresenta o pano onde se estampara a face ensangüentada de Cristo, com o qual a limpara. Nesse momento, ela busca em Jeremias a expressão da sua dor: "Ó vós todos que passais por este caminho, atendei e vede se há dor igual à minha dor" (Lam 1,12).
No chamado Encontro, o sermão está relacionado com a comovente cena, cabendo ao orador, com sua retórica, arrancar a contrição de seus ouvintes, inspirados pela descrição daquele drama. Ao final, aproximam-se os andores; a imagem do Senhor dos Passos passa adiante e, como que desolada, conduzem a da Senhora das Dores por entre o povo até o Calvário.
Assim se faz(ia) em Minas, onde as montanhas são como expressões diversas da espiritualidade deste bom povo, sempre procurando aproximar-se mais do Céu.