quinta-feira, abril 27, 2006

O testamento e a malhação de Judas

Uma das manifestações populares lusitanas, que se inseriu no folclore brasileiro, é a Malhação de Judas, no Sábado de Aleluia. Judas, apóstolo traidor, cognominado Iscariotes por ser oriundo de Carioth, cidade ao sul de Judá, já um ano antes da Paixão de Jesus teria perdido a fé no Mestre, mas continuava a acompanhá-lo por comodidade e para ir furtando do que ofereciam aos apóstolos. Obcecado pelo dinheiro, antes de se afastar de Cristo, resolveu entender-se com os sinedritas - membros do Sinédrio, conselho supremo dos judeus. Judas assistiu ainda à última ceia, em que Jesus revelou a sua traição, mas foi logo ao encontro dos inimigos de Cristo para cumprir o que tinha combinado e receber 30 dinheiros. Consumada a traição, arrependeu-se, quis restituir o dinheiro, mas, repelido pelos sacerdotes, enforcou-se numa corda.
É a esse trágico fim que um costume originário da Península Ibérica foi radicado em toda a América Latina, desde os primeiros séculos da colonização européia. No Brasil, ilustra esse costume antigo o julgamento de Judas, sua condenação e execução. Antes do suplício, alguém lê o “testamento” do traidor de Jesus, escrito em versos, colocado especialmente no bolso do boneco. O testamento é uma sátira das pessoas e coisas locais, com graça oportuna e humorística para quem pode identificar as figuras alvejadas, em quadras simples, com uma rima fácil e compreensível. Existe, nessa representação, uma inter-relação entre o lúdico/profano e o sagrado, através do qual é possível compreender a aproximação entre o culto religioso e uma espécie de jogo, em que a criação cultural do homem se mistura com os aspectos sagrados por ele evocados.
Em Lafaiete esse costume remonta os tempos de Queluz, não obstante à reação do clero, chegando a ser proibida a queima do Judas, na década de 30 do século passado, julgando tratar-se de uma profanação a exploração de um motivo religioso por motivo de troça. Mas essa censura não perdurou muito, sendo restaurada essa expressão folclórica nas décadas que se seguiram. A escritora Lucy de Assis Silva, em seu recente livro sobre a Rua da Chapada – “Subindo e Descendo a Ladeira” – descreve a Quinta do Judas que era “armada” no Cabo Verde, junto à capela de Nossa Senhora da Paz. Na paróquia de São Sebastião ainda se conserva o costume da queima do Judas, após a cerimônia da Vigília Pascal, a vitória de Cristo sobre o mal, sobre o pecado, sobre a morte. O escritor Gilberto Victorino de Souza chegou a compor, em versos satíricos, o testamento do traidor, que era lido antes de sua queima, legando seus bens às pessoas envolvidas na organização da Semana Santa naquela comunidade.
Uma crônica publicada em um jornal do início do século passado, quando ainda se fazia a queima do Judas na paróquia da Conceição, relata que o encarregado, como nos anos anteriores, arrecadou a quantia necessária junto às pessoas e ao comércio local para que pudesse confeccionar o boneco que, cheio de pólvora, seria queimado após a Vigília. Terminado o ato religioso na Matriz, os fiéis se dirigiram ao Largo do Carmo, onde o famigerado personagem da História Sagrada seria executado. No entanto, lá chegando, só viram o poste ficando ao chão, onde deveria estar pendurado o boneco. Sem entender, alguns procuraram saber o que acontecera e onde estava o responsável, foi quando ele chegou, completamente embriagado; gastara todo o dinheiro entregando-se à sedução de Baco. Quando apontou na esquina da rua do Rosário, cambaleando, subiu a rua do Carmo e chegando ao largo em frente à igreja, deparando-se com as pessoas que aguardavam pela malhação de Judas, gritou: “Se querem queimar alguém, queimem aí o Dr. Fulano (referindo-se a um político local da época, que também aguardava pelo espetáculo), que é tão traidor, além de ladrão, quanto Judas”. Todos se retiraram, calados, como que consentindo...
E isso nos leva a lembrar os versos do celebrado poeta padre Antônio Tomas, acerca da festa da malhação do Judas:

“À sombra da folhagem verde e escura
De um galho preso em mastro levantado
Um Judas pelo vento balançado
Da forca pende, em cômica compostura.

E um bando em frente a exótica figura
Olha e, ao vê-lo em semelhante estado
E o vozeio do povo acelerado
Um bimbalhar dos sinos se mistura.

Eu fico um tanto a meditar e penso
Ante o festivo e insólido alvoroço
Que é falta de critério e de bom senso.

Uma tolice arrematada, enfim,
Tantos Judas havendo em carne e osso
Levar-se à forca um Judas de Capim.”

11/04/2006