segunda-feira, dezembro 29, 2008

Ao final de mais um ano

Ao chegarmos ao fim de mais um ano, torna-se oportuna a meditação sobre os Novíssimos, tão esquecidos em nossos dias: Morte, Juízo, Inferno e Paraíso. "Em todas as tuas obras, lembra-te dos teus novíssimos, e jamais pecarás" (Ecl. 7, 40); se os tivéssemos sempre em mente, não pecaríamos, como adverte São João Bosco. Se nossos dias são conturbados, é porque pouco se medita ou mesmo não se cogita seriamente sobre os Novíssimos.
Ao pensarmos na Morte, deve-se vê-la como o limiar daquele estágio que o pecado dele nos privou, a eternidade. É pela morte, à qual ninguém está imune, que se poderá contemplar, face a face, o Senhor. Mas ela depende da vida; "talis vita, finis ita", assegura o provérbio latino. E como nos adverte Santo Afonso Maria de Ligório, o pai dos Redentoristas, "tal é a sorte reservada a todos os homens, aos nobres e aos plebeus, aos príncipes e aos vassalos. Logo que a alma saia do corpo com o último suspiro, dirigir-se-á à eternidade e o corpo deverá reduzir-se a pó". A partir daí, só terá a apresentar ao Altíssimo o que fez durante sua vida terrena.
Seguir-se-á, então, o Juízo, o momento em que, diante do Supremo Juiz, nada lhe será inquirido, pois a sua consciência se acusará. Como lembra Santo Agostinho sobre esse instante: "A sua vinda é motivo de alegria para o fiel e de terror para o ímpio". Nesse instante, a alma sentirá as primeiras impressões do que a Seqüência da Missa de Defuntos descreve: "Dia de ira, aquele dia, no qual o mundo se tornará em cinzas (...) Quanto temor haverá, então, quando o Juiz vier para julgar com rigor todas as coisas". "Qual não será o espanto daquele que, vendo pela primeira vez o seu Redentor, o vir indignado!", exclama Ligório. Ao exame seguir-se-á a condenação, após a balança divina pesar, "não as riquezas, nem a dignidade, nem a nobreza das pessoas, mas sim, somente as obras". O Bispo de Hipona diz que, nesse momento, virá primeiro o demônio a delatar todas as suas faltas e Deus, segundo Cornélio a Lapide, para trazer-lhe aos olhos "os exemplos dos santos, todas as luzes e inspirações com que o favoreceu durante a vida e, além disso, todos os anos que lhe foram concedidos para que os empregasse na prática do bem". "Tereis, pois, de dar conta até de cada olhar", assegura Santo Anselmo. Enfim, o justo ouvirá o convite divino: "Servo bom e fiel, entra no gozo do teu Senhor". (Mt 25,21) O pecador estará entregue à misericórdia de Deus.
Após o Juízo Particular, restam os dois últimos novíssimos: o Inferno e o Paraíso. No primeiro, está a alma condenada ao eterno sofrimento. Um lugar de tormentos, como lhe chama o mau rico que a ele foi condenado (Lc 16, 28): "um lugar de tormentos, onde todos os sentidos e todas as faculdades do condenado devem ter o seu tormento próprio, e quanto mais se tiver ofendido a Deus com algum dos sentidos, tanto mais terá a sofrer este mesmo sentido", lembra Santo Afonso. Já o justo, logo ao ter entrado "no gozo do teu Senhor", desfrutará da Visão Beatífica nesse "dia perpétuo sempre sereno, primavera perpétua sempre deliciosa".Que a meditação dos Novíssimos prepare-nos para dias melhores em 2009.

sexta-feira, dezembro 19, 2008

Diante do presépio de Belém


Aproxima-se o Natal. Pelas ruas, a azáfama de nossos dias, a correria contra o relógio... quase não sobra tempo, nem para ir às compras. Mas em casa, enquanto a refrescante broega insiste noite e dia, entrego-me à contemplação do presépio. Não com rasgos de avançada mística na via espiritual, mas, sinceramente, com piedade e saudosismo. Piedade, pela fé; saudosismo, por tudo o que o Natal nos reacende no peito, como a lembrança dos caros que se foram, a observação das desigualdades (mesmo que leviana e passageira), os propósitos que vão se desenvolvendo enquanto se contempla o estábulo onde nasceu o Deus Menino.
Naquele recolhimento, no entanto, não me abandona a agitação de fora de casa, que insiste atrair-me com o ruído de automóveis, buzinas, o vozerio, carros de som anunciando promoções no comércio... E me arrebata um desejo quase incontrolável de sair pelas ruas à procura do Presépio de Belém. Onde estará o Menino Deus em meio a essa turba alvoroçada? Nos estabelecimentos comerciais? Nos bares? Nas igrejas? Nas sarjetas, a consolar os famélicos? Onde estará o Verbo de Deus Humanado que veio ao mundo para redimir o homem cativo do pecado? Seu ícone ainda pode ser visto nos painéis publicitários, nas decorações de vitrinas, nos cartões de Boas Festas; mas não O reclinam no coração. Na meditação do Natal não se atêm ao mistério da redenção, não contemplam a candura e a inocência que nos traduzem a verdadeira paz que Ele nos veio trazer.
A paz... Outra palavra muito usada nesta época do ano, sem conhecer o seu real sentido. Esse sentimento equivocado de comodismo, tranqüilidade, de desobrigação para com os deveres é a ilusão que as pessoas desejam que seja concretizada no ano vindouro. E essa concepção errônea de paz é tão antiga que o próprio Cristo já advertira a seus discípulos: "Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada" (Mt10,34). Sim a espada que separa os bons dos maus, o trigo do joio, o puro do ímpio. Essa paz que Nosso Senhor desconhece é aquela que afasta o homem da Verdade Eterna, daquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida. Os povos clamam pela verdade, mas a verdade de Pilatos, a verdade relativa, autônoma, oportuna, sem Deus, sem Cristo.
Volto pressuroso para a solidão junto ao presépio; só ali encontro a sinceridade, a inocência, a pureza na tosco estábulo, nos olhares estupefatos dos pastores, na adoração de Nossa Senhora e de São José, silente, no mavioso canto dos anjos, na cintilação da estrela indicando o Palácio do Deus Menino. Nada disso encontrara nos shoppings, nem nas igrejas, muito menos nas campanhas beneficentes, nem na pobreza esquálida pela fome. Em nenhum deles consegui decifrar um laivo de esperança naquEle que não veio trazer a paz, mas que é a Verdadeira Paz.
Ao concluir esta digressão em torno do Natal, outro desejo não me toca, senão o de que todos se dispam de seus interesses, ao menos na Noite Santa, para contemplar o Divino Infante. Que nada os perturbe, para que possam se entregar a essa piedosa - ainda que um pouco nostálgica - meditação. Tenho certeza que compreenderão o verdadeiro significado do "presente" no Natal, quando concluírem que, como previra Isaías, "um filho nos foi dado" (Is9,6). É ele a Verdadeira Paz.
Um Santo Natal a todos, desejando que renasça em cada coração a esperança de dias de paz no ano vindouro!

quinta-feira, dezembro 04, 2008

O soldado sem farda

Na última semana, comemoraram-se anos de morte de um dos grandes intelectuais brasileiros, Gustavo Barroso. Polêmico, em decorrência de suas convicções austeras, fundadas em sólidos princípios morais, foi uma das reluzentes inteligências que este país conheceu. Pesquisador atento, dirigiu com muita eficiência por quase quatro décadas o Museu Histórico Nacional, resgatando peculiaridades não apenas no campos apenas da história, mas também no folclore, nos aspectos regionalistas, enfim, na cultura brasileira, de um modo geral.

Esse cearense, nascido em 1888, no ocaso do Império, foi uma daquelas figuras que parecem terem vindo ao mundo predestinadas a guiar, ou indicar os homens as trilhas a serem percorridas. Bacharel em Direito, foi professor admirado, político atuante, jornalista vigoroso e escritor de uma verve singular, resultante de sua primorosa formação haurida nos conceituados e tradicionais estabelecimentos de ensino de Fortaleza e do Rio de Janeiro. Como legado, deixou à bibliografia brasiliense 128 livros e um dicionário. Seu cabedal acerca das ciências e humanidades era tal que, aos 35 anos de idade apenas, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, tomando assento na cadeira 19, na vaga do sábio arcebispo de Mariana, dom Silvério Gomes Pimenta. Presidiu a Casa de Machado de Assis por quatro vezes e foi sob sua orientação que o Petit Trianon, doado pelo governo francês para ser a sede da Academia, foi adaptado para essa finalidade.

Estreara na literatura, aos 23 anos, sob o pseudônimo de João do Norte. A propósito, era comum o uso de apelidos no meio literário, não para se esconder de algo ou poder falar o que quisesse – como alguns néscios hodiernos entendem (se é que têm essa capacidade, a de compreender algo), por não saberem distinguir o estilo peculiar de cada um, blasonando-se, idiotamente, de vítimas inocentes. Mas usava-se pseudônimo até por discrição, para que os críticos se sentissem à vontade para analisar seus escritos sem constrangimento. Voltando a Barroso, sua vasta obra literária não foi leviana, muito menos furtiva. De sua pena ficaram as mais profundas análises, fruto de pesquisas e de sua aguçada observação e de conjecturas, acerca da história, da cultura e da sociologia do Brasil. Uma de suas mais polêmicas teses é a de que o Brasil não seria um país independente, visto o Grito do Ipiranga ter custado uma dívida herdada de Portugal com a Inglaterra.

Gustavo Barroso destacou-se, mais ainda, tornando-se conhecido das massas, quando aderiu ao Integralismo, de Plínio Salgado, em 1933. Naquele momento, em que o mundo passava por grandes transformações, sob diversos aspectos, quando nações se viam ameaçadas por ideologias perniciosas e sistemas políticos radicais, levantou essa bandeira tornando-se seu mais importante doutrinador. Dessa época são os livros que divulgavam as idéias, não menos fundamentalistas, porém inflamadas por sentimentos cívicos e religiosos. Tal era a clareza de suas convicções que, discordando dos rumos tomados pelo movimento, dele se afastou, ficando, contudo, com o epíteto de “soldado sem farda”.

Barroso foi dessas figuras que alteavam sua voz firme, com discernimento, sem temor, para conter a sanha daqueles que, a qualquer preço, insistem em assombrar com suas idéias confusas e interesses mesquinhos. Apontou os desequilíbrios sociais, econômicos e políticos do Brasil, identificando suas origens e indicando o caminho a seguir. No seu tempo, foi uma das inteligências mais celebradas e citadas; hoje, é apenas uma lápide sobre a cova onde jazem seus restos mortais. Assim é o Brasil: de lembranças parcas e memória nenhuma.